O conceito de política vem do termo grego pólis (cidade). Tem como objetivo organizar os problemas e preocupações de todos os cidadãos (da sociedade), de acordo com o príncipio do bem comum. A ética do bem comum sobrepõe-se aos desejos, paixões, instintos e interesses privados ou de grupos familiares ou corporativos. O que equivale a dizer que o exercício prático da política deve estar subordinado à vontade da maioria, expressa através de canais, instrumentos e mecanismos de participação efetiva. Porém, como a massa exaltada e sem controle pode instituir a tirania da maioria, tal exercício deve seguir príncipios de ordem moral relativos à dignidade humanna de cada cidadão. Entra qui, via de regra, a contribuição das diferentes religiões, das filosofias de vida ou dos valores pessoais e culturais.
No universo dos países ocidentais, particularmente, a política e o regime democrático mergulha raízes profundas na herança judaico-cristã, como também na civilização greco-romana. A ideia da filiação divina e sua correspondente dignidade, por um lado, e a cultura dos direitos de cada cidadão frente ao Estado, por outro, desenham contornos singulares na legislação daqueles países e seus regimes modernos. Encontramos nessas tradições o pano de fundo não somente da Independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789), como também das subsequentes formas de estrutura democrática.
Casamento entre política e negócio
A política costuma abrir portas largas para um crescente enriquecimento patrimonial. Este, por sua vez, garante verbas abundantes para uma reeleição continuada nos cargos públicos. Numa palavra, a polítiva converte-se em empreendimento pessoal, familiar ou corporativo. Instala-se, com isso, uma dinâmica dialética e circular onde a riqueza privada e a vida pública se cruzam e se reforçam reciprocamente. Ou seja, o casamento entre o campo dos negócios (de ordem privada) e a participação nos orgãos do Estado (de ordem pública) resulta extremamente benéfico para a classe dominaqnte que se perpetua no poder.
A esse respeito, não seria exagero parafresear o "divid et impera” dos romanos em confundir para dominar. Quanto mais se criam, se consolidam e se ampliam vasos comunicantes entre os dois cofres –o público e o privado– maior o campo de ação para o oportunismo sem escrúpulos e para a maquinação de contratos escusos ("maracutaias”), tanto no escuro da noite quanto à plena luz do dia. Ganha força ilimitada a maquiagem das atividades político-privadas, com vistas a vantagens pessoais ou de grupos poderosos. Na ausência de limites precisos e de formas de controle por parte da entidades representativas da sociedade, tudo acaba sendo possível para quem domina a engrenagem complexa da política. "Em terra de cegos, quem tem um olho é rei”, diz com razão o ditado popular. Ou então no terreno ambíguo da fronteira como pátria de ninguém, os oportunistas fazem a lei a seu modo e levando em conta seus interesses, estendendo algumas migalhas para os que se encontram debaixo da mesa.
O conceito de patrimonialismo mergulha aqui suas raízes mais profundas. Enquanto, por um lado, a "coisa pública” acaba sendo apropriada como patrimônio privado, por outro, este procura ampliar a rede capilar de influências para maximizar infedinidamente seus rendimentos. Uma via de mão dupla entre público e privado facilita a manutenção e acréscimo dos privilégios. Os dois campos se entrelaçam de tal modo que se torna quase impossível traçar a linha divisória entre ambos. Os limites se mesclam e se confundem, estabelecendo-se uma influência mutuamente reforçadora. O que faz com que, por veses, nem os próprios representantes municipais, estaduais ou federais, nem a população, sejam capazes de conhecer a fronteira entre os campos público e privado. A prática se generaliza a tal ponto que passa a ser naturalizada, neutralizando as críticas e questionamentos que poderiam surgir.
Daí que, no cenário político, inúmeros entram com certo patrimônio e saem muito mais ricos; alguns mal conseguem equilibrar seus bens, deixando o campo mais ou menos como a ele chegaram; raríssimos são os que iniciam com razoável riqueza e terminam menos ricos. Guardadas as devidas proporções, cabe aqui a clássica observação do Pe. Antonio Vieira sobre uma prática comum dos tradicionais colonizadores, os quais, "chegavam pobres às Índias ricas e retornavam ricos das Índias pobres”.
O público e o privado
Dois autores ajudam a ilustrar esta relação entre riqueza privada e participação na vida pública. Ambos preocupam-se com o desenvolvimento da democracia, quer em termos internacionais, quem em termos nacionais. O primeiro é Beltrand Russel, em sua História do Pensamento Ocidental. Segundo ele, a trajetória democrática nos países ocidentais conseguiu abolir a dinastia política, mas não foi capaz de abolir a dinastia econômica. De fato, as eleições periódicas nos regimes modernos, democratizados, rompem com o "direito de herança política” dos soberanos aos respectivos descendentes. Mas, ao mesmo tempo, continua a ver com naturalidade o "direito de herança econônica”, de pai para filho, não importando como tenham sido adquiridos os bens.
Este patrimônio econômico privado, legado de geração em geração ao infinito, termina por constituir um sólido patamar para impor sobre os demais a própria influência sobre os bens públicos. Assim, de maneira indireta, refaz-se a herança não somente em termos familiares, mas também no interior de um grupo ou da classe dominante. Em síntese, a dinastia econômica, inquestionável até o momento, acaba comprando a dinastia política. Resulta que, graças à riqueza e ao poder que esta comporta, alguns grupos podem manter-se perpetuamente no domínio do cenário político. Com o suporte do pode econômico, e como que entrando pela porta dos fundos, o poder político retoma o antigo caráter hereditário. Uma vez mais, reinsta-se a círculo vicioso entre os bens privados e os bens púbicos. Uns fortalecem e são fortalecidos pelos outros, num jogo dinâmico e circular de causa e efeito, em vistas a uma mútua autojustificação.
O segundo autor é Raymundo Faoro, na sua clássica obraOs donos do poder. Nela o sociólogo brasileiro chama a atenção para a costumeira "apropriação privada dos bens públicos ou de sua influência”. Trata-se de uma prática histórico-estrutural que atravessa toda a política brasileira, desde a Colônia à República, passando pelo Império. Tem suas raízes mais longínquas e profundas na Peninsula Ibérica, mas ganha um terreno extremamente fecundo neste lado do Atlântico. Com frequência preocupante, o campo da ação política é colonizado pelo empreendimento privado. Cuida-se das decisões de ordem pública como se fossem decisões de natureza particular. A tal ponto que não pocas obras construídas com o dinheiro dos cofres públicos (taxas e impostos), acabam sendo inauguradas e entregadas como se fossem benefícios de Fulano, Sicrano ou Beltrano de Tal. Obras que, não raro, levam o nome e uma placa comemorativa das autoridades de plantão, algumas delas enquanto ainda vivas.
É como se a administração da fazenda, do engenho, do comércio ou da fábrica (bens privados) servisse de modelo para a administração dos interesses do Estado (bens públicos). Ou como se a necessidades básicas da população e as preocupações fundamentais do país passassem a ser vistas como uma extensão natural do quintal pessoal, familiar ou empresarial. Daí o conceito de patrimonialismo, em que facilmente se estabelece um tráfico vicioso e pernicioso entre o poder da riqueza e o poder de sua influência sobre as autoridades públicas. Pior ainda, a força dos bens privados, implícita ou explicitamente, leva a incorporar o domínio sobre as instâncias e orgãos dos poderes executivo, legislativo ou judiciário, sem falar de outras áreas do Estado. Breve, o dinheiro compra o apoio e as decisões políticas. E, como ocorre em qualquer refeição festiva, quem paga costuma escolher o cardápio.
Contradições da democracia
Os itens anteriores põem a nu as contradições dos regimes democráticos modernos. Os interesses econômicos de grupos e aglomerados nacionais e internacionais acabam tiranizando as decisões das lideranças políticas. Estas dispçoem de pouca margem de manobra, frente ao império do mercado total, especialmente em tempos de globalização. Da mesma forma que os representantes das democracias ocidentais não seguem os princípios da ética política, tampouco serão capazes de subodinar as relações econômicas a tais princípios. A economia globalizada, de filosofia neoliberal, instala a lei do mais forte de maneira natural e em abrangência universal.
Diante desse contexto global, negocia-se com desenvoltura e rentabilidade os negócios pessoais, familiares ou corporativos, ao mesmo tempo em que se pode fazer do erário público um negócio privado e altamente rentável. Com o agravante de que, em caso de lucro, este será privadamente apropriado; já em caso de prejuízo, os custos transferem-se para o conjunto da população. Numa palavra, acumulação privada do bônus público, socialização pública do ônus privado. Isto é, o país como um todo é chamado a contribuir para o crescimento desse patrimônio promiscuamente público-privado. Na repartição final do bolo, alguns poucos se apossam dos ganhos, benesses e priviégios; outros, em maior número, mal podem equilibrar-se numa espécie de corda bamba sempre instável; mas cabe à grande maioria da população pagar a conta.
Trocando em miúdos, a via política conduz normalmente da base ao topo da pirâmide social, ou mantém aí os que já o habitam. Além do mais, possui menanismos próprios para perpetuar no poder os que lá conseguem chegar. Tais mecanismos, vale sublinhar, encontram-se no interior mesmo do regime democrático. Teoricamente, qualquer cidadão pode candidatar-se a um cargo público, mas, na realidade, precisará encontrar recursos financeiros, ou padrinhos ricos, que o alavanquem do primeiro ao segundo andar da escala social. Concretamente, o processo de uma candidatura tem um custo considerável de dinheiro sonante, mais ainda depois da revolução das telecomunicações e da informática. Em termos mais práticos, é caro, demasiadamente caro, o ingresso que permite ultrapassar a fronteira entre a Senzala e a Casa Grande, para não esquecer o saudoso Gilberto Freire. Tão caro que, atingido esse patamar, não poucos políticos contraem dívidas com seus "patrocinadores”, ficando-lhes eternamente devedores. O que leva boa parte deles a virar as costas à Senzala de onde são originários.
Conclui-se que a democracia, em última instância, constitui um arcabouço legal para manter os poderes e privilégios da classe dominante, em detrimento de seu conceito original: "governo do povo, pelo povo e para o povo”. Tanto que os partidos políticos, em especial no Brasil, raramente representam um programa e um estrato social de contornos bem definidos. Representam menos ainda os interesses e necessidades básicas das populações de baixa renda e abandonadas à própria sorte. Ao contrário, os partidos pouco mais são do que escadas para os candidatos subirem do primeiro piso ao alto da pirâmide. Escadas que, após o uso, são tranquilamente descartas, a exemplo de um exército que costuma queimar a ponte por onde acaba de passar, para impedir a aproximação do inimigo.
Disso resulta o intenso trânsito dos políticos entres os vários partidos, de acordo com as circunstâncias do contexto político ou com os interesses de uma nova candidatura. Um número considerável de vereadores, deputados, senadores ou candidatos a cargos majoritários, em seu itinerário político, já passarm por dois, três, quatro e mais agremiações partidárias. Troca-se de partido quase como se troca de moradia, e seguramente com mais facilidade do que se muda de time futebolístico, por exemplo. Popularmente falando, são poucos os que "vestem a camisa” de um ou outro partido, o que vale dizer assumir o programa, com seus projetos, estratégias e metas. Mais grave ainda, são raros os partidos que exibem uma proposta razoavelmente elaborada e definida sobre um "projeto de nação”. Prevalece, ao invés, um "projeto de poder”, retomando as expressões do sociólogo Francisco de Oliveira.
Importa menos conhecer as condições reais em que vive a população do país, do que dominar os instrumentos para conquistar e manter o poder e o próprio mandato político, reportando-nos às ideias de Maquiavel em O Príncipe. Isso exxplica a distância abissal entre os debates dos vereadores, deputados e senadores travados nas Assembleias e no Congresso Nacional, por uma parte, e as conversas no cotidiano dos cidadãos, por outra. Em linguagem figurada, é como se uns estivessem em AM e outros em FM. O abismo não é menor se contrapomos os corredores e escritórios do poder judiciário, ou as secretarias e ministérios do poder executivo frente aos embates diários das pessoas no seu dia-a-dia.
A impressão é a de que a população e as autoridades do Estado circulam em órbitas diferentes. No planalto central, e instâncias similares do poder, habita como que uma espécie de seres extra-terrestres, aparentemente imortais, com idioma, interesses e comportamento próprio. Nas ruas, campos e grotões da planíce, os simples mortais seguem com suas lágrimas e risos, tristezas e alegrias, lutas e sonhos. Mas ambos os campos parecem incomunicáveis, como se uma barreira instransferível impedisse qualquer tipo de relação, como na parábola evangélica de Lázaro frente ao rico avarento. A relação entre os de cima e os de baixo ocorre apenas no perído das eleições, quando então os extraterrestres se dão conta que seu mandado, apesar de dispor de uma cadeira cativa, dever ser periodicamente confirmado pelos eleitores, votos e urnas. A esse processo eleitoral, repetido demagógica e espetacularmente de quatro em quatro anos, com todo o aparato do marketing, se reduz em geral o conceito de democracia. Pobre democracia, nua, esquelética e privada de qualquer canal de participação ativa e consciente, direta e transformadora!
|