Desemprego e salário insuficiente são obstáculos para que o trabalho remunerado dê acesso aos meios de vida
Má qualidade de ensino nas escolas públicas, precariedade na assistência à saúde, alta mortalidade materna, gravidez na adolescência e crianças desamparadas. O quadro descrito acima, muito mais do que espelhar a realidade dos centros urbanos brasileiros, mostra a falha do Estado em assegurar os direitos sociais previstos pela Constituição de 1988, ou seja, garantia à saúde, educação, previdência social, lazer, segurança, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.
De tal maneira, como bem avalia o coordenador do Núcleo de Psicologia do Trabalho da Universidade Federal do Ceará (Nutra-UFC) e doutor em Psicologia Social, Cássio Braz, no Brasil, o Estado é mínimo, o que significa dizer que ele interfere cada vez menos na sociedade. Diante disso, só o trabalho, principalmente remunerado, pode suprir a necessidade de subsistência da pessoa e da sua família. "Hoje não é possível sobreviver sem o lavor", diz.
Lamentavelmente, esse lavor quase não tem relação com a definição de "fazer o bem" - que é a transformação do meio externo para ajudar as pessoas -, já que se trata de um trabalho duro e que, muitas vezes, não traz satisfação. Para a professora de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará Marinina Benevides o trabalho está se reduzindo a emprego e é sinônimo de salário. É uma forma de obter bens materiais.
"Ele não é mais realizado por vocação. As pessoas costumam se engajar em atividades que não lhes dão prazer", ressalta a professora. Conforme Braz, o direito à cidadania não pode estar atrelado à remuneração, realidade que deve mudar.
O trabalho, em sua definição, é o emprego das energias física e mental em prol da transformação da natureza. A palavra vem de antes dos gregos e foi modificada no século XX, com a sociedade salarial. A noção de lavor era negativa porque apenas quem precisava exercia as atividades laborais.
A noção atual é a da Revolução Industrial, no fim do século XVIII, na qual o trabalho é visto com descrédito. É a chamada precarização, citada por Cássio Braz, que diz respeito à fragilização, vulnerabilidade e desregulamentação do lavor. O trabalho é um dos oito direitos sociais previstos pela Carta Magna. Mas e quando nem mesmo esse direito é assegurado, como acontece no País e no Ceará?
Na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), o contingente de desempregados foi estimado em 176 mil pessoas em março de 2010. A taxa de desemprego é de 10,2%, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos So-cioeconômicos (Dieese).
Desigualdade
O desemprego, segundo Marinina Benevides, tem um efeito devastador em uma sociedade capitalista, gerando desigualdade social, violência e pobreza. "O que o homem tem assegurado hoje é o seu salário", frisa.
E quando a remuneração decorrente do trabalho não é suficiente para suprir todas as necessidades de sobrevivência? No Brasil, o salário mínimo atual é de R$ 510. Segundo o Dieese, em março de 2010, o valor necessário para garantir os direitos do cidadão deveria ser de R$ 2.159,65.
Uma vez que o desemprego e o salário mínimo são obstáculos para que o trabalho remunerado garanta os meios de subsistência, Cássio Braz sugere o "fazer o bem", acompanhado de políticas de Estado.
Entrevista -Marcelo Uchôa*
Estado deve oferecer serviços de qualidade para garantir dignidade
Que direitos são possíveis de conseguir com o emprego?
Teoricamente, o trabalho remunerado deve ser suficiente para garantir a vida digna do trabalhador e de sua família. Nesse intuito, a Constituição de 1988 estabelece a obrigatoriedade de pagamento de um valor mínimo, a título de salário, capaz de garantir direitos básicos, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte, além de previdência social. O Estado tem o dever constitucional de participar de forma "indireta" do atendimento dessas necessidades, oferecendo serviços universais, gratuitos e de qualidade em diversos setores. Infelizmente, isso não ocorre da maneira adequada.
O que fazer para que o Estado dê garantias constitucionais a todos os cidadãos?
A responsabilidade pelo não cumprimento desses direitos básicos não pode ser atribuída exclusivamente ao governo, em especial ao Federal. Todos somos conhecedores das contradições gritantes havidas no processo de construção do desenvolvimento do País, sendo conscientes das imensas distorções e dificuldades assumidas pelo atual governo. Uma democracia mais participativa já é um bom começo para o País alcançar êxito nessa questão.
A partir do momento em que as pessoas têm seus direitos assegurados, são cidadãos. Mas qual é o conceito de cidadania?
É uma definição em evolução que já tem como pedra angular o consenso de que não se pode considerar cidadão apenas aquele que participa da vida eleitoral do País. Elementos como igualdade e participação efetiva na construção social cotidiana também são caracterizadores de uma cidadania ativa. Isso significa que a cidadania será cada vez mais enriquecida quanto mais próximo se estiver de uma democracia plena, que permita aos cidadãos viverem em plenitude no gozo e desfrutar de seus direitos, em especial dos fundamentais.
E quando muitos não têm nem mesmo o trabalho, o que fazer?
Toda pessoa, pelo simples fato de ser humano, goza de bens jurídicos associados à sua dignidade, os chamados direitos humanos que, enquanto garantias fundamentais, devem ser universalizados pelo Estado. Não havendo trabalho, é óbvio que o Estado deve encontrar, efetivamente, uma solução para a garantia de vida com, no mínimo, dignidade dessas pessoas. E é exatamente essa a proposta de uma série de ações estatais afirmativas.
*Advogado trabalhista
DIFICULDADE
Família conta apenas com salário mínimo
Como a maioria das famílias cearenses, a da dona-de-casa Maria do Socorro Sousa vive praticamente com um salário mínimo por mês, que nem sempre é garantido pela atividade informal de seu marido, José Maciel, porque falta trabalho. Ele é pedreiro e faz "bicos". "O que o meu esposo ganha, muitas vezes, não dá para passar o mês. Temos de apelar para a ajuda da minha família", diz.
Em uma casa simples, com um espaço físico limitado, localizada no bairro Cidade dos Funcionários, em Fortaleza, moram seis pessoas: a dona-de-casa, o marido e quatro filhas. Para piorar a situação, uma das filhas está grávida aos 16 anos.
A fim de garantir a moradia, José Maciel precisa pagar R$ 150, fora alimentação, água, luz e outras despesas. "A sorte é que recebo mais de R$ 100 do Bolsa Família, que já garante o pagamento da água e da energia", afirma Maria do Socorro.
Momentos difíceis
Pelo menos a educação e a saúde são garantidas por meio da rede pública de ensino e do posto do bairro que atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A dona-de-casa diz que vive com dificuldade, mas já passou por situações piores.
O lazer não faz parte da vida da família de Maria do Socorro. Mas a dona-de-casa conta que, pelo menos, as filhas têm acesso à educação. "Vivemos como podemos. Não temos como melhorar de situação. Só Deus tem o poder de mudar a nossa vida".
PASSO QUALITATIVO
Solução está nas mudanças
Além de "fazer o bem", especialistas acreditam que é preciso modificar o atual modelo econômico, motivador de problemas como o desemprego e a pobreza, para que a sociedade passe a ter acesso aos direitos sociais. Segundo a professora de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Marinina Benevides é fundamental dar um passo qualitativo no modelo de racionalidade a fim de mudar a realidade vigente.
Segundo ela, está na hora de modificar a fórmula do trabalho assalariado: exploração do homem pelo homem, a mesma da servidão, praticada na Idade Média, e da escravidão. "Precisamos inventar outra alternativa que pode ser o investimento em organizações do terceiro setor, economia solidária e trabalho voluntário para gerar emprego", salienta.
Insustentável
A professora acrescenta, ainda, que insistir no modelo econômico atual, que prioriza o lucro, não é a forma de garantir os direitos, quando há condições sub-humanas de sobrevivência. "O capitalismo está se mostrando insustentável".
Porém, como analisa o coordenador do Núcleo de Psicologia do Trabalho da Universidade Federal do Ceará (Nutra-UFC) e doutor em Psicologia Social, Cássio Braz, essas formas de gerar emprego estão atreladas à "monetarização", ou seja, ao ganho de dinheiro, que é o que as pessoas precisam. "Do contrário, como elas vão sobreviver?", indaga. Como destaca Cássio Braz, hoje é difícil haver um trabalho voluntário puro. Mas ele lembra que ainda existem ações que não visam ao dinheiro, mas ao bem.
Outra possibilidade levantada pelo coordenador é se a sociedade desse um passo para trás e voltasse a viver por meio do sistema de troca. "Ou, então, a forma de subsistência poderia vir da coletividade, produzindo e distribuindo ganhos, mas esse é um método difícil de ser aplicado", sugere. De acordo com Cássio Braz, a fórmula de produção coletiva funciona ainda em tribos indígenas, mas para a sociedade urbana é impraticável.
Já para o advogado trabalhista, mestre em Direito Constitucional e professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), Marcelo Uchôa, uma democracia, cada vez mais participativa, o combate mais severo à corrupção e o aperfeiçoamento das instituições estatais, agregados a uma cooperação mais eficiente da iniciativa privada, são fundamentais à materialização definitiva dos direitos sociais tutelados pela Constituição.
"Urge também o estabelecimento de uma legislação que vise não só à tutela dos direitos individuais, mas à consolidação de uma estrutura sindical forte, autônoma, livre e independente", finaliza.
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