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Saiu na Imprensa

  06/07/2015 

“A arte como ferramenta de resgate de vidas”, diz grafiteiro carioca

Cria do morro Pavão Pavãozinho, parte cartão postal de Copacabana, na zona sul carioca, o grafiteiro Acme é referência no movimento cultural de rua. Seu talento o levou da pichação e da malandragem às galerias de arte. Viajou diversos países na América do Sul, Europa e EUA, mas nunca modificou o conteúdo social dos seus desenhos. É o olhar da favela que ele busca mostrar em seus trabalhos.
 
Na entrevista ao Brasil de Fato Acme fala sobre sua trajetória, seu engajamento em projetos sociais em comunidades e na militância pelo direito à moradia.
 
Recentemente sua casa e atelier, junto à residência de outros moradores, quase foi demolida pela prefeitura. Para ele, apesar de o poder público estar se aproximando dos movimentos artísticos de rua ainda é possível manter a independência e críticas nos trabalhos.
 
Como se deu seu primeiro contato com a arte?
 
Se intensificou no contato com o skate, porque me conectou com outros universos. Mas comecei a desenhar pelas histórias em quadrinhos quando tinha uns 4 anos de idade. Meu pai foi preso, então fomos ao Mato Grosso do Sul onde morava a família da minha mãe. Comecei a vender bolo, salgado e a conhecer os engraxates e guarda carros, que também viraram meus bicos. Um moleque sabia dançar break, e isso me levou a cultura hip hop. Quando não estava na rua trabalhando estava trancado em casa desenhando ou vendo quadrinhos. Voltei ao morro no Rio com 11 anos quando meu pai saiu de cadeia, e comecei a vender bolo na praia e acabava na pista de skate do Arpoador onde conheci uma galera que me conectou ao universo underground. Via uns vídeos de skate na casa dos caras lá no Leblon antes de dar um rolé, e sempre tinha uns graffittis no cenário. Chamou minha atenção, porque eu já desenhava nos shapers, nas camisas, já tinha pequenas encomendas. Se intensificou quando formamos um grupo de rap no Arpoador, a gente ficava lá rimando e fumando bagulho. Nisso eu já estava pichando, entramos na onda daquele filme Kids, uma galera skatista que só fazia merda. Abracei a cultura hip hop, outros caras estão no crime até hoje, morreram, foram presos ou tocaram a vida. Fiz umas missões de pichação com escalada mesmo, escoltar beral e marquise, fazer pasta, frequentar reunião e tudo mais. Pichei de 93 até 2002, evolui minha pichação e agora tenho conteúdo com uma visão mais crítica. O graffitti não tinha se estabelecido na minha vida porque não tinha muito lugar liberado e faltava dinheiro para comprar tinta.
 
Nessa época também não tinha quase ninguém fazendo na zona sul, só uns caras em São Gonçalo como o (Fabio) EMA...
 
Quando surgiu o Ema, eu já senti aquele espírito de competição como na pichação, porque tem aquela coisa do cara pegar mais alto que você ou destruir o seu bairro e pegar todas as suas escoltas. Quando o Ema e o Eco surgiram na zona sul fodeu, comecei a bater forte para afirmar meu espaço. Em 1997 veio o Binho fazer graffitti no Arpoador, vi depois numa revista da Rap Brasil e começou a me dar empolgação. Nessa época conseguia tirar uma merrequinha do meu salário no quartel para comprar umas tintas, tirava uns R$ 25 para comprar lata e o resto ia para minha família. Aí começamos a formar um bonde, veio o Hare, depois conheci o Gloye, trocamos muita informação, agora ele está com uma parada com o Kadu.
 
Mas e como foi seu desenvolvimento técnico da arte dentro do quartel?
 
Quando cheguei lá teve uma seleção de profissão, e eu fui para a parte de pintura e desenho porque não tinha informática na época. Fazia o quadro mural, as placas, qualquer tipo de informação, até alvo de tiro com Saddam Hussein, Bin Laden e Hitler eu fiz (risos) para os caras treinarem tiro no sapatinho. Fazia a porra toda, sabia que para eu ser bom nisso tinha que me dedicar como os melhores. Vi o filme do Monet, do Pablo Picasso, Jackson Pollock, os caras desenhavam o dia inteiro. Já tinha noção de como era a vida desses mestres, então me apresentei como desenhista no quartel. Trabalhei nessa sala durante 6 anos, foi como uma faculdade para mim. Pintava na rua todo final de semana, e lá dentro fazia os meus desenhos. Às vezes me trancava e não saia nem do quartel. Fora as vezes que eu fiquei punido por indisciplina, que ficava desenhando direto.
 
Como você foi se inserindo no mercado da arte?
 
Já tinha esse conhecimento e conhecia uma galera. Aqueles caras que andavam comigo, uns viraram donos de restaurante, outros abriram lanhouse ou boate, e me chamaram para pintar. Davam o material e ajuda de custo, e ficava como aprendizado. Acabava o expediente no quartel fazia essas paradas e voltava virado, dava um jeito de dormir durante o dia, fiz até um paredão de armário dentro do alojamento para isso (risos). Daí então me juntei com uma mina.
 
Quando você saiu do quartel já estava vivendo disso?
 
Disso e outras coisas. Fazia a manutenção de armas nos morros também, isso me manteve muito bem. Más acabei me viciando em cocaína, essa mina que me juntei morava na pista e quis viver essa aventura de morar no morro comigo isso tudo foi um aprendizado mas nunca deixei a arte em segundo plano. Percebi que esse mundo estava crescendo demais, vi que tinha de parar com essas merdas. Morei com essa mina na Tijuca quatro anos, ela gostava dessas coisas das armas, tivemos uns problemas e voltei pro morro. Me afundei nas drogas por causa da solidão. Depois conheci a Iani em uma viagem que fiz para o Espírito Santo e com ela me converti na igreja e me limpei. Fiquei seis anos, com a bíblia na mão eu tinha um escudo, ninguém me perturbava mais. Passei esse período de recuperação com a arte em atividade, e ao equilibrar minha saúde meu trabalho começou a evoluir muito. Mas já recaí depois que larguei a igreja também. Só que hoje é diferente, tenho filhos e mulher. Se levasse meu graffiti para o lado comercial, já estaria cheio de dinheiro. Continuo na favela, na resistência e levando a minha mensagem. O graffiti era escorraçado, e hoje estão pagando para isso.
 
Quando que você começou a viajar o mundo e fazer tela?
 
Quando terminei o meu primeiro casamento tinha ido pra França. E com essa coisa da igreja comecei a me envolver pro ativamente em projetos sociais, porque antigamente mesmo com toda a loucura dava aula no projeto do Ema, “A volta dos que não foram”, na Fundição Progresso. Dei aula na Casa São Miguel Arcanjo com o Cazé e o Rodrigo Grau, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) e no Morro do Palácio em Niterói, além do “Talentos da vez”, no Santo Cristo. Dar aula de desenho dá dinheiro. E tem que conquistar o aluno, não pode ir lá tirar o seu e não passar sua lição. Se não tiver uma dedicação não consegue prender a atenção do aluno. Tem uma assistente social que vai tratar da parte psicológica, isso possibilita ao maluco que trabalha com arte passar um pouquinho do seu conhecimento. Mas hoje em dia tenho projetos também, fundei o Museu de Favela em 2009 junto a outras lideranças aqui no Galo. Hoje é referência territorial no Brasil e no mundo entre comunidades, fui presidente durante dois anos quando estava na igreja e me deu disciplina para seguir nessa gestão política. Consegui uma posição mais de agitador cultural, uma liderança na favela e que faz por ela. Que tem seus altos e baixos, mas sua postura de sempre bater de frente pelas causas da comunidade. Como o direito à moradia e a luta pela arte como uma ferramenta de resgate social, oferecer o reaproveitamento de matéria prima com as esculturas que venho fazendo. Quero ser artista, mas possibilitar agentes sociais a realizar coisas na comunidade.
 
Para multiplicar esse conhecimento e princípio?
 
É pô, porque eu sou um cara que represento. Vou à rua e quebro os paradigmas, faço o meu graffitti com um conteúdo social e vou levando a bandeira. Então preciso de pessoas como a Iani, minha esposa, e estudantes que cuidam das questões burocrática, que visitam e cuidam dos alunos, mostrando os artistas para eles. É uma maneira de fragmentar e potencializar ainda mais a nossa força. Se centralizar não dá para dar conta, porque eu ainda tenho que cuidar dos meus filhos, né, mano?
 
Que momento estamos vivenciando atualmente no graffitti carioca?
 
A prefeitura viu uma oportunidade de se inserir mais popularmente através dos grafiteiros, porque a gente é um movimento de rua muito forte. A cultura hip hop em geral, porque para organizar um grande evento você sempre vai unir os quatro elementos - mc, dj, graffitti e a dança. A prefeitura teve a malandragem de ver no graffitti uma maneira de fazer o teatro da grande Roma enquanto as províncias estão abandonadas, usando a arte para dar uma anestesiada no povo. Somos escravos, mas estamos em busca da liberdade.
 
O prefeito Eduardo Paes é um oportunista nesse sentido?
 
Esse cara é bandido, mas ao mesmo tempo bobão porque não consegue perceber que a galera vê sua intenção política na aproximação. Então eles fizeram esse Eixo Rio, mas a galera está consciente. Por um lado dá oportunidade a muitos que não são conhecidos, mas nunca vão conseguir controlar uma galera que hoje em dia é micro empreendedora e autônoma. O cara pode ficar em casa trancado produzindo, e de repente criar um acervo de telas que vai valer uma grana forte. Tem independência dentro de casa se montar sua estrutura.
 
São várias vertentes nessa área de arte de rua que possibilitam a geração de renda?
 
Várias possibilidades, e a principal é se trancar e fazer tela. Porque a maioria dos caras malandros tem dinheiro, cria estrutura ou já vem com ela e trabalha a linguagem, sua identidade e conceito, faz seus contatos, otimiza com uma triagem e de repente só está lidando com o que está dando dinheiro. Tenho traçado um caminho mais estreito, que é manter a essência com os projetos sociais e a imagem da favela. Carregar essa resistência e ao mesmo tempo me inserir em galerias, mas muito mais devagar. Tem cara que com uma exposição vendeu dez quadros a R$ 30 mil cada, nisso já compra um apartamento para coroa.
 
Você tá falando do Gas, que tinha uma barraca na Uruguaiana que vendia tinta?
 
Dele mesmo, o cara deu um salto e agora está morando em Amsterdam. O Ismael também está vendendo bem pra caramba, então são opções. Quando o cara vai pegar teu histórico dá até para fazer um filme. O Pablo Picasso, por exemplo, teve uma importância política do caramba para o país. O conteúdo das suas telas e a forma como atuou. Ele zoou o mundão, mas não deixou de participar e se preocupar com as guerras e covardias. Esse é o tipo de postura que eu admiro. Tenho minha preocupação e um sensor para perceber que nego pode querer escravizar a nossa arte, tá ligado? Ou então escravizar o nosso território, sacou? Colonizar novamente de uma forma diferente, como numa guerra fria que não é declarada. Os caras chegam apertando a sua mão, mas estão querendo tomar o seu território. Hoje em dia é o nosso direito à moradia que eu tenho apoiado. E como entrei na linha de fogo deles, tenho que apoiar muito sagazmente porque se eu me expor demais vão querer me tirar.
 
A prefeitura condenou sua casa por estar em área de risco?
 
Alegam também que é Área de Preservação Ambiental (APA), mas eu consegui os dois laudos: dos engenheiros civis e ambientais. Estou morando só há um ano nessa casa, acabei de construir, tinha um barraco de madeira que virou alvenaria lá em cima do morro. Meu pai desacreditou da favela, porque tinha o ritmo dele na contravenção e teve de sair fora. Mas também não criou uma estrutura para a gente morar, então voltamos ao morro. Preciso do meu estúdio, e tanto o atelier quanto minha casa estão ameaçados de remoção.
 
Como você vê essa o estado em relação à moradia na favela para além do seu caso?
 
Eles têm o interesse deles. Querem tomar o lugar de todos que lutaram e resistiram aqui nesses 100 anos, como se fosse o momento do golaço. Mas a bola está no nosso pé, estamos num território que virou foco para o turismo. Não tenho interesse em ganhar dinheiro com isso, mas quero capacitar as pessoas da comunidade para que usufruam. Não quero que venham aqui roubar o almoço da molecada, irmão. Meus alunos vão produzir aquilo que eu produzia em 2001, um souvenir e uma coisa mais simplificada com o lixo mas dá para vender a um preço mais acessível. Vai chegar cliente para essa molecada que está saindo dessa oficina e mostrando a favela.  A nossa solução é fazer o projeto gerar renda ao moleque. Mas os caras querem tomar essa bocada, vai para um Criança Esperança, um projeto do AfroReggae, que já estão comprados pela Globo. Nosso projeto é de morador, funciona com micro empreendedor individual, crowdfunding, a vaquinha da internet, o poder popular. A ONG Onda Carioca, que atua no terreirão com a praça do futuro que é um projeto independente, dá uma força com doações. Fazemos a coisa andar de uma forma bem mais humilde, mas também não é escravo de porra nenhuma, de partido ou mídia.
 
Tá cheio de hostel e gringo também na favela, né?
 
Tá cara, estão querendo entrar para usufruir dessas paradas. Tenho certeza que eles alegam ser área de risco, mas têm interesse capitalista na história. Fazer um empreendimento, vender terras, sem falar na vista que tem aqui. Tão cavando por debaixo do morro para poder passar o metrô, mas com certeza terá um espação ali para empresas privadas, tipo um McDonald’s. São coisas que vão render mais taxas à prefeitura, então querem colocar aqui em cima também. Pode botar, mas tem que interagir com o Zé Tricolor, a Madinha e o Ivan, o Jô, o Gerson, Bela Vista... os comércios que já estão estabelecidos. O cara não quer trabalhar o mercado local, quer chegar, tirar a pessoa, fazer uma oferta de final de feira e pegar o ponto. Tem que fazer o fastfood da favela configurado para eles, porque na real eles não querem deixar a gente ganhar o nosso dinheiro. Mas o meu ponto ninguém vai tomar não irmão, direito a gente tem.
 
Mas você é um artista reconhecido. Já fiz reportagem sobre esse tema em mais de 15 favelas e na maioria dos casos as pessoas ficam desamparadas ou prejudicadas: o direito não vale.
 
Geral toma, lá perto do campus da Uerj derrubaram a casa com o coroa dentro. Meteram a porrada nele, é muita covardia que tem por aí. Acredito muito no poder da minha arte e da minha trajetória pela comunidade, tenho certeza que vou convencer outras pessoas a lutar por esse direito à moradia e valorizar o terreno. Porque o cara que construiu a casa dele ou herdou do avô, às vezes não tem consciência de pertencimento e propriedade. Se ele analisar bem, nunca vai querer sair dali. Uma casa você tem uma laje, um quintal, no meio de Copacabana, isso é um paraíso. Mas tem um preço, porque sofremos por causa das escadas e a violência que às vezes para chegar a sua casa precisa aguardar o tiro parar. Mas essas coisas passam, uma comunidade vai se transformando ao longo dos anos. São cem anos de revolução, teve período que não tinha nem saneamento básico. As pessoas faziam suas necessidades nas valas ou jogavam lixo pela janela, e hoje muitos já têm essa consciência. O morro devia feder pra caralho naquela época, e não tinha água nem luz. Então amanhã vai ter pessoas mais civilizadas, eu e meus vizinhos já estamos criando nossos filhos de outra maneira. Os pais estão conscientizando das melhorias que eles têm de seguir. Nossos pais foram desestruturados, mas hoje estamos conseguindo dar alguma instrução aos moleques e evitar caminhos ruins pra eles. Fui salvo pela arte, e acho que a nova geração será melhor mesmo com todo o descaso do governo para a comunidade.
Fonte: Portal Brasil de Fato
Link: http://www.brasildefato.com.br/node/32384
Última atualização: 06/07/2015 às 10:24:14
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