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01/02/2010

Plural - Edição janeiro/2010

Décimo Terceiro Salário

*Adma Murad

Carlos acordou com vozes na cozinha. Das Graças, sua esposa, conversava com a irmã:
- Estou bastante feliz. Neste final de ano vamos usar o dinheiro do décimo terceiro, meu e do Carlos, para fazer o quartinho dos meninos e eu vou colocar a minha dentadura.
- Faça isso mesmo, Das Graças. Afinal, minha irmã, você é jovem e não fica bem estar banguela. Esses quatro dentes que lhe faltam na boca deixam você mais velha. E o quarto dos meninos é necessário. Os coitadinhos estão dormindo espremidos na sala. É muito desconforto.
- Eu sei. Fico com dó dos meus filhos. Ainda temos sorte de ter conseguido essa casa popular, embora só de um quarto. Aos poucos a gente vai ajeitando. Este é o meu sonho. Amanhã é dia de pagamento e eu mal posso esperar. Vou bolar meus dentes logo. O pessoal do escritório onde eu faço faxina e sirvo cafezinho vem me cobrando isso também.
Carlos ficou esperando a cunhada ir embora para se levantar. Onde já se viu, Das Graças fazendo planos para o décimo terceiro dele. É certo que já havia combinado isso com a mulher. Mas mudara de idéia, desde aquelas conversas com o doutor Loiola, advogado que morava no prédio onde Carlos era porteiro.
O advogado adorava ficar na portaria conversando com os funcionários do prédio. Comprava os classificados e ficava lendo a seção das garotas de programa. Ligava, depois contava os detalhes à platéia. Carlos, entre eles, invejava o doutor Loiola. Dinheiro, carro, belas roupas, a mulher bonita, com todos os dentes na boca.
Na semana anterior, o advogado chegara se gabando:
- Lembram da Maria do Céu? Fui ontem lá. Maravilha. Tudo de bom. Estou zonzo até agora. E caiu na risada.
Carlos pegou os classificados do dia anterior. Procurou até que achou.
Sou bonita, loira, corpo durinho, marquinha de biquíni, peito e bunda de enlouquecer. Venha me conhecer. Meu nome é Maria do Céu. Prometo te levar ao paraíso.
Era tudo que ele precisava. Imaginou tendo uma mulher que já passou pelas mãos do doutor Loiola. Mas precisava de um bom perfume. Não podia dizer que era porteiro de edifício. Era bem apessoado. Louro, forte, olhos claros. Ia dizer que era fazendeiro no interior. Assim, se falasse alguma bobagem ela não ia levar em conta. Roupa não era problema. Final de ano, tinha ganho umas semi-novas do morador do 802. Lembrou do casal mais antipático do prédio, os arrogantes do 601. O marido andava sempre bem perfumado.
No dia seguinte, procurou a empregada do casal, Iolanda. Nas férias do carnaval os patrões viajaram para a fazenda dos pais da mulher e ela foi com o namorado passar o carnaval no apartamento. Carlão deu cobertura. Ninguém gostava deles mesmo. Falou do perfume. Iolanda conseguiu um pouco num frasco.
Ligou para a Maria do Céu:
- Alô? (a voz doce do outro lado)
- Alô. Eu estou chegando do interior e vi seu anúncio. Quanto é o programa?
- Trezentos reais a hora. Você não vai se arrepender. Eu só trabalho para gente de classe.
- Dá pra ser amanhã, oito da noite?
- Deixa eu consultar minha agenda. Certo, dá sim.
- Então, até amanhã.
Colocou a roupa bonita, os sapatos numa sacola e disse a das Graças que ia ter reunião com o síndico após o expediente, quando então receberiam o pagamento do mês e o décimo terceiro. No final do dia tomou banho, trocou a roupa, colocou o perfume e foi se encontrar com Maria do Céu.
Ela lhe ofereceu uma bebida. Ele, calado. Ela perguntou se ele era tímido.
- É porque eu sou do interior, fazendeiro, mãos grossas da lida no campo. Sou de falar pouco sim.
- Não se preocupe. Aqui seu trabalho é só pagar, riu. O resto é por minha conta.
Foram para o quarto. A visão daquela mulher nua o deixou boquiaberto. Ela fez coisas que ele nunca pensou que existissem. A hora passou rápido. Pagou e saiu. Tonto, ficou vagando pelas ruas.
Estava em êxtase. Não tinha vontade de ir pra casa. Igualara-se por um momento ao doutor Loiola. Sentou num banco de praça depois foi caminhando pra casa. Das Graças veio a seu encontro, aflita.
- To vindo da delegacia. Fui prestar queixa. Imagine que fui roubado no ônibus. Lavaram o envelope do meu décimo terceiro. Ainda bem que o salário do mês estava no outro bolso, senão ia faltar para as despesas.
 - Ai, meu Deus. E agora? Minha dentadura, o quartinho das crianças...
 - Deixa de ser idiota, mulher! Gritou Carlos. Eu cheio de preocupação e você me enchendo o saco! Quero sossego!
- Desculpa, desculpa, não vamos mais falar sobre isso. A gente já esperou, espera mais um pouco. Afinal, um ano passa tão depressa...
Foi para o quarto, tirou a roupa para deitar. Do programa da noite sobraram cinqüenta reais. Deu as costas para a esposa, a cabeça em Maria do Céu.
O que fazer com cinqüenta reais? Lembrou das palavras da mulher “um ano passa tão depressa...”
No dia seguinte, comprou cinqüenta reais de flores e mandou para Maria do Céu.

(Conto extraído do livro “De amores, humores e horrores”, de Adma Murad)

*Adma Murad é  funcionária do BNB da Ag. Simão Dias, em Sergipe

Última atualização: 30/11/-0001 às 00:00:00
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