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21/09/2006

Nossa Voz - 30ª RCR da AFBNB: Ética, Política e Desenvolvimento Regional

Ética no centro do debate

Íntegra da entrevista com o Professor Doutor em Filosofia, Manfredo Oliveira, um dos palestrantes da 30ª RCR:

A ética permeia todas as dimensões do ser humano, então, como se pode definir a ética e quais são seus princípios fundamentais?

Manfredo Oliveira – Quando se fala em ética a gente está pensando nas normas que devem reger a vida humana, porque o ponto de partida da ética é o fato do ser humano não nascer pronto, quer dizer, os animais nascem prontos, eles têm um sistema instintivo que funciona por si mesmo sem que eles precisem nem deliberar nem tomar decisões. O ser humano não, precisamente por ser um ser livre, ele tem uma vida inteira para se construir como ser humano. Acontece que a vida pode impedir que essa construção se dê, seja por razões individuais, seja por razões da própria organização da vida coletiva. Então a ética é exatamente a busca dos critérios, porque se eu estou posto diante da tarefa de me construir a mim mesmo, é claro que na vida se impõe uma pergunta: “será que aquilo que estou fazendo me conduz à conquista da minha humanidade?”. Quer dizer, aquilo que eu faço é autêntico, verdadeiro, me conduz à realização plena da vida humana? Eu digo que o critério fundamental da ética é o valor intrínseco que cada realidade tem. E com isso estou tomando aqui uma posição muito forte contra uma certa tendência da ética que nos últimos quatro, cinco séculos tem sido dominante, que é a ética que a gente chamaria antropocêntrica, que só reconhece valor para o ser humano. Eu estou dizendo que cada ser tem um valor, agora esse valor tem graus diferentes. Aquele ser humano que é capaz de pensar em todos os outros é claro que ele tem por causa disso um lugar diferente no conjunto dos seres, no conjunto do universo, porque ele é o lugar onde o universo se pensa. Por isso, ele é inclusive responsável não só por si, mas por todos os outros seres. Nesse sentido, ele tem uma dignidade maior, tem um valor intrínseco maior do que os outros, que vai na base da responsabilidade maior que ele tem pelos outros. Mas isso não significa dizer que a natureza também não tenha valor e isso é um grande problema ético da modernidade: o projeto de dominação da natureza pelo homem que hoje está não só tornando a própria vida humana impossível, mas desrespeitando fundamentalmente os direitos básicos da própria natureza. A natureza é algo e enquanto tal tem que ser respeitada. E nós criamos um projeto de dominação da natureza que está simplesmente passando por cima de qualquer valor intrínseco da natureza. Então, ética hoje tem que ser mais que uma ética antropocêntrica, tem que ser uma ética que respeite o valor específico de cada ser e é quando a gente é capaz de fazer essa hierarquia de valores, botando as coisas no seu lugar e respeitando o lugar de cada coisa no universo, que a gente age prontamente numa postura ética.

Você falou sobre a importância da participação popular na coisa pública. De que forma o senhor defende essa participação popular?

Trata-se do problema da democracia e a democracia vai além do Estado de Direito. O Estado de Direito é aquele que não só tem direitos fundamentais na base de toda ordenação jurídica da sociedade, mas que se rege ele mesmo também por direitos. Quer dizer, o governo, o Estado em si, não pode fazer o que bem entender. Ele tem que agir de acordo com o direito. A democracia dá um passo a mais. Esse passo a mais vai na direção de reconhecer que a verdadeira cidadania pertence ao povo, o governo é apenas o executor da vontade popular. É claro que na forma da democracia que nós temos essa soberania do povo é reduzida à instituição dos seus governos. Nós votamos, escrevemos um cheque em branco e deixamos que aqueles que foram eleitos por nós decidam tudo. Quer dizer, é uma soberania delegada a representantes. É claro, por uma série de fatores, mas, na nossa própria definição do que seja soberania está dito que a soberania é do povo, que a exerce ou diretamente ou através de seus representantes. A grande questão que se pôs hoje é a tomada de consciência de que a democracia puramente representativa não chega nem de longe àquilo que a democracia deve ser, ou seja, o exercício real do poder pelo povo. Daí que se define hoje que aqueles mecanismos de democracia direta que já estão incluídos na Constituição brasileira sejam regulamentados, a fim de que o povo brasileiro possa ter de fato uma efetiva participação, não só na discussão das questões públicas que dizem respeito a todos, mas inclusive na deliberação, ou seja, a participação nas decisões.

Hoje em dia parece senso comum que ética e política não podem andar juntas. Talvez porque se tenha uma visão muito limitada tanto da ética quanto da política. Porque a discussão sobre política se resume hoje à política partidária. Quando se vê a ética a partir de um panorama mais geral, saindo da ética do indivíduo e partindo para a ética global e quando se pensa a política como a prática para o bem comum, se percebe que esses conceitos não podem estar separados. Então, nesse sentido, nós gostaríamos que o senhor falasse sobre que princípios regem ou deveriam reger a ética da política e a ética na política.

Quando eu estava vindo para cá, fui fazer uma fotocópia e tinha um rapaz vendendo refrigerantes ao porteiro de um edifício e o rapaz disse assim: ”eu queria ver se esses profissionais da política não recebessem nenhum tostão, quem é que se candidataria”. No fundo a política virou um negócio. É essa a idéia que se passou para o povo brasileiro que a política é uma forma de ganhar dinheiro e de fato é um negócio para muitos, um negócio de milhões! Você disse com toda razão que se a gente entende bem o que é ética e o que é política é impossível separar uma de outra, porque a política é a ética nas instituições sociais. Eu acho que existe quase um consenso hoje no mundo, pelo menos no Ocidente, de que os princípios que devem reger basicamente as instituições sociais, portanto, a esfera do político, são os direitos fundamentais da pessoa humana, que passaram para as Constituições da maioria dos Estados ocidentais como direitos fundamentais, quer dizer, direitos humanos são a formulação propriamente da reflexão ética. Os direitos fundamentais são esses direitos positivados. Então, os direitos fundamentais e as coisas que daí decorrem constituem, vamos dizer assim, o pano de fundo que deveria orientar. Porque, no fundo, a ação política está em função do bem comum, e o que é o bem comum? A efetivação dos direitos fundamentais de todos os seres humanos, porque o ser humano só pode se dizer verdadeiramente respeitado enquanto tal quando ele tem acesso àqueles direitos das esferas todas da vida. Você sabe que existe essa história das diferentes declarações de direitos que foram aprofundando, porque essa idéia mesmo de quais são as exigências da dignidade da pessoa humana não são descobertas de uma vez. A própria história humana, os conflitos humanos que foram aparecendo, foram ajudando. Você veja que os primeiros direitos humanos, ditos subjetivos, são todos direitos negativos: direito a não ser impedido de se locomover, de não ser impedido de manifestar a sua opinião, de não ser impedido de manifestar a sua religião... eram direitos negativos no sentido de que eram direitos que me defendiam da ação do Estado. Mas a coisa foi progredindo e nós fomos descobrindo os direitos positivos, quer dizer, por exemplo, o Estado tem obrigação de oferecer saúde, educação... E hoje já estamos na esfera dos direitos ambientais, ecológicos, que aí sai da esfera do puramente humano – porque não se trata só de defender a natureza enquanto ela não atrapalha a minha vida – mas de defender de fato a natureza mesma. Essa base de direitos é o que constitui, a meu ver, o conjunto de princípios que deveriam dirigir a ação política que nada mais é de que a tentativa de implementar a efetivação dos direitos.

Estamos discutindo aqui ética enquanto no nosso país estamos vivendo uma grande crise política, exatamente pela não observância desses princípios morais e éticos pelos nossos representantes. O sr. falou sobre reformas e políticas públicas que deixariam o país menos vulnerável a esses atos, de corrupção e tudo o mais. Que políticas públicas e reformas seriam essas?

Só um exemplo: nós não temos partidos. Nós votamos em pessoas e isso aí é um campo enormemente aberto ao “caciquismo”, veja, por exemplo, um Antônio Carlos Magalhães, na Bahia; um Sarney, no Maranhão, esses são os maiores, mas têm milhões de caciquinhos, quer dizer, você não tem um partido político. Todas as democracias que puderam verdadeiramente avançar no mundo Ocidental foram aquelas em que ninguém vota em pessoas, vota em partidos, porque o partido significa exatamente uma proposta de implementação de políticas que possa efetivar direitos. O fato de você ter que votar em partidos, onde não haja financiamento público das campanhas, por exemplo, isso significa dizer que você abre um espaço enorme para que as empresas privadas, o grande capital, possam influir diretamente na eleição de pessoas e naturalmente os compromissos assumidos têm que ser ressarcidos... Então, todas essas coisas e, sobretudo aquelas reformas que dizem respeito à regulamentação dos mecanismos de democracia direta, que já estão na Constituição, como o plebiscito, referendo, etc. Essas coisas são fundamentais, porque se você é capaz de votar num partido, você está votando numa proposta e isso aumenta enormemente a consciência política das pessoas. Se não, você vai ver que as pessoas aqui no Brasil não têm o menor problema: elas votam em um candidato de um partido, em um candidato de outro partido, porque a questão é o candidato, eles não têm senso de proposta. Uma democracia existe onde há contraposição de propostas, de visões do mundo, de meios para enfrentar os problemas, se você não tem isso... Essa questão dos cargos de confiança é um problema escandaloso! Como é que um país como o Brasil pode ter 40 mil cargos de confiança, se um país desenvolvido como é a Inglaterra tem 300?! Isso significa dizer que se tem aqui um mecanismo de corrupção gigantesco, esses cargos vão ser negociados. Dizem que quando o Lula foi eleito ele resolveu se afastar do convívio humano porque não agüentava mais. As pessoas vinham a ele e diziam, “olha, faz 20 anos que eu estou no PT, então eu mereço pelo menos a direção de um órgão”. Então, todo mundo considera no Brasil a esfera estatal como uma fonte de benefícios privados. É aquela política da não-existência propriamente do estatal. O Brasil é aquela eterna fazenda de açúcar, onde o senhor de engenho é governo, é parlamento, é justiça, é tudo, não tem a esfera estatal. O que funciona é a fazendinha ali com os escravos, o senhor é tudo, quer dizer, nós temos a dificuldade de compreender a esfera do impessoal. Tudo se resolve na base do pistolão, tudo se resolve através dos benefícios privados. Ora, numa coisa assim, nem as pessoas têm idéia de direitos. Por exemplo, o Estado faz saneamento numa favela e as pessoas dizem “ah, como ele é bonzinho!”. Eles não têm idéia de que (o gestor) está simplesmente efetivando direitos! Falta essa consciência de direitos, por causa de nossa formação social e porque nós nunca tivemos propriamente revoluções que fossem nessa direção, como a revolução burguesa, que foi a Revolução Francesa, onde foram defendidos direitos fundamentais, veio até a primeira declaração dos direitos humanos. Nós nunca tivemos isso. Nós sempre passamos de uma coisa para outra sem que se aprofundasse a cultura política. Agora eu vejo, no momento atual, uma coisa muito importante, que são os movimentos sociais. Eu acho que o Brasil é um grande laboratório de movimentos em todos os níveis e isso vai modificando a cultura política. A cultura é uma coisa fundamental; o ser humano não é só um ser que está em instituições, sistemas, estruturas, mas ele é um ser que tudo joga num contexto. Então, padrões culturais são fundamentais, a configuração da vida coletiva etc. Ora, e mudando os padrões culturais através do engajamento – e os movimentos sociais têm uma vantagem gigantesca: eles estão próximo aos sofrimentos humanos. Cada movimento desse se faz em função de certas reivindicações que provêm das situações reais da vida. Eles têm a capacidade de jogar, no nível da opinião pública, a discussão das grandes questões e isso ajuda a recriar a ética, quer dizer, a cultura ética vigente na esfera da sociedade.

A partir do que o sr. estava falando – dos instrumentos que já estão previstos para a participação popular assim como os direitos – porque me parece que os direitos elementares, assim como estes instrumentos, são legais, mas não são legítimos (no sentido de que as pessoas não se apropriaram destas idéias). Como exemplos, cito o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso. As pessoas não se apropriam e, por isso, não os defendem. Na sua opinião, como fazer para tornar esses instrumentos legítimos, do ponto de vista da apropriação pela base?

Você está levantando um problema que no exterior se costuma dizer que as idéias no Brasil são fora de lugar. Veja que a nossa Constituição, por exemplo, está muito além da realidade do Brasil. Por exemplo, toda essa base de direitos – que constitui a base mesmo do ordenamento jurídico no Brasil – ela não entrou na cabeça das pessoas. Eu não vejo outra saída a não ser a participação em amplos movimentos. Porque é exatamente o engajamento em movimentos sociais que leva as pessoas a refletirem. Eu tive experiências na favela, com pessoas faveladas, eles começam naturalmente na base dos interesses privados. Claro, em uma sociedade onde o individualismo é estrutural na consciência política... Então, vou lá porque eu sei que a minha casa vai ser tirada; se fosse a casa do outro não estava nem aí. Mas aí o fato de se unificar para defender os direitos, quando há discussão, quando há esclarecimento das questões... Veja, as pessoas no Brasil estão numa situação tal pelo afastamento até da educação mínima – português, matemática, etc. (a maioria é analfabeto funcional). Lembro de ter levado uma vez um advogado para explicar um povo numa favela, em Fortaleza, de uma situação que eles estavam vivendo, a Prefeitura estava querendo tirar mais espaço de mais de 300 casas, e o advogado começou a falar e um velhinho chegou pra mim e falou no ouvido: “olhe, diga a esse homem aí que se ele está pensando que vai enrolar a gente com esses nomes feios, ele não vai não, viu, porque a gente vai atrás pra saber o que é”. Então eles não estavam nem sabendo o que o advogado estava dizendo. O advogado estava dando mecanismos para eles se defenderem, mas numa linguagem técnica, de tal maneira afastada da cultura geral do povo da favela, que eles não sabiam o que ele estava dizendo. Então eu acho que uma discussão, a participação nos movimentos sociais, as deliberações, os debates, as rádios comunitárias que podem ter um efeito enorme é que vão melhorando essa cultura política. Eu não vejo outro caminho a não ser isso. Quer dizer, nós temos que passar para a base da democracia que eu chamaria de deliberativa, quer dizer, não é aquela só que têm regulações jurídicas, um ordenamento jurídico à altura, mas aquela que ajuda as pessoas a deliberar, a pensar e a tomar consciência de seus direitos. Eu acho que em grande parte, pelo menos até o governo Lula, muitos dos movimentos sociais faziam isso. Depois, com aquela política, com aquela cultura presidencialista, milenarista que nós temos na cabeça – primeiro, tudo depende do presidente da República, que vai resolver todos os problemas – os movimentos sociais de certa maneira recuaram nessa tarefa educativa, que é também tarefa dos partidos. Mas como os partidos nossos não existem, em primeiro lugar, e em segundo, são eleitoreiros (só existem em função de eleições) então eles não fazem essa função que está sendo feita pelos movimentos sociais, em todos os níveis de debates, discussões e as lutas ajudam muito a tomar consciência.

Última atualização: 30/11/-0001 às 00:00:00
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