Por Alberto Amadei
Os governos nos últimos 15 anos reprimiram demasiadamente o gasto público, em decorrência da chamada modernização conservadora. O caminho opcional da política monetária e cambial completou o estrago formidável sobre o que restava dos pilares da questão regional, especialmente da “questão nordestina”.
O que nos teria levado – eis a questão – a abandonar a questão nordestina? Quais os argumentos centrais que soterraram a questão nordestina como se tal problemática não coubesse na modernidade recente? Que tipo de doença bestial terá acometido os governadores e acadêmicos do Nordeste, de modo a obliterarem sua capacidade estratégica de pensar a questão nordestina, perdidos em uma inútil e inoperante guerra fiscal entre pequenos estados miseráveis ilhados?
O mestre dos mestres reconheceu que – grosso modo – só com o investimento não se resolveria a questão nordestina. Isso porque havia por dentro da proposta da SUDENE, o pressuposto de que se a economia fosse industrializada – se os capitais entrassem para valer na base técnica da produção – o problema da região estaria suficientemente equacionado. Os oportunistas aproveitaram a carona na autocrítica de Celso Furtado para enterrar a SUDENE.
O que ficou acendeu o sinal vermelho para Furtado foi a verificação empírica de uma espécie de “mau desenvolvimento”. As elites aproveitaram o fluxo dos capitais. O resultado da SUDENE, contudo, não alcançou a maioria da população, exceto uma classe média raquítica. Furtado foi mais longe. Diz que o que fizemos foi insuficiente. Disse mais: erramos! Pouco tempo antes de morrer, Furtado atacou o cerne da questão nordestina. Não abriu mão da necessidade de aumentar e intensificar o fluxo de capitais para a nossa região. Criticou, isso sim, a submissão da dinâmica econômica regional aos condicionamentos de fora para dentro.
Porém, no final da sua caminhada, sem tempo de sobra para concatenar o conjunto sofisticado da sua imaginação criadora, decidiu dirigir suas baterias certeiras sobre a questão nordestina em outro sentido. Declarou, bom som, de que nada resolve a questão nordestina se não forem distribuídos dois ativos fundamentais: a terra e a educação.
Verdade que esta alternativa todos estamos cansados de ouvir. Até os gestores da Era Maldita ensaiaram modificar os critérios de reforma agrária e educação. Vale dizer, que se pode modernizar o Nordeste intensamente, mas não se fará a inclusão da população nordestina na dinâmica sócio-econômica do país, sem o acesso da plebe rude à terra e à educação.
Há uma tragédia em curso, que nega a alternativa furtadiana. Sobe de relevo uma tendência desastrosa no Nordeste: a fragmentação das iniciativas, de modo concorrencial.
Um tipo de “novo regionalismo”. Besteirol do tipo “ilhas de excelência”, como se fora possível seguir um caminho próprio independente do conjunto nordestino e do contexto geral. Uma espécie de “paroquialismo internacionalizado”. Algumas utopias do tipo Cingapuras dos Trópicos.
O único modo de distribuir os ativos de que falou o mestre dos mestres, na escala e intensidade necessárias a uma resposta tempestiva, exigiria satisfazer uma pré-condição: a unidade da mobilização política nordestina.
De certo modo, não seria inconveniente recriar uma espécie de Confederação do Equador, não para romper a unidade nacional, mas para fazer valer a questão nordestina, de forma a penetrar as carnes da Federação; hoje absorvida pela União.
Há um vírus pior ainda circulando nas veias dos tecnocratas nordestinos e uma viseira tapando o olhar da elite política nordestina. Imaginam, esses novos zarolhos do desenvolvimento, que basta fazerem parte da economia global, como se fossem um enclave extrovertido, para garantir a dinâmica interna do seu rincão. Há um nítido perigo morando aí. Pensar de costas para a nação.
O modelo cearense dos últimos anos entrou de cabeça nessa armadilha do pensamento. Acreditaram que poderiam fazer parte de um “regionalismo de ricos” e inserir a sua “ilha de excelência” na dinâmica virtuosa da economia global. Ledo engano. Pura ilha da fantasia.
Isso tudo, nos lembrou Furtado antes da viagem à eternidade, decorre de um processo mais amplo, mais grave e mais profundo. O processo de desconstrução do país. Segundo Celso Furtado, a questão nordestina foi atirada para a lata do lixo por conta dessa grande tendência, não só à fragmentação na capacidade de pensar o nordeste, quanto a criação de vários regionalismos dentro da região.
Há uma clara impossibilidade de assegurar o desenvolvimento do nordeste, sem que a questão nordestina seja tratada como um todo.
Repito o que tenho dito: falta uma postura firme do Nordeste, da sua classe política no Parlamento, para alterar a correlação das forças que nos afoga.
Fiquemos com o alerta de Celso Furtado que tanta falta ainda nos faz: “O tempo histórico se acelera e a contagem desse tempo se faz contra nós”.
É preciso dizer mais alguma coisa? Acredito que não.
Alberto Amadei é especialista em política fiscal pela FGV-RJ e co-autor de “Questão de Soberania - Auditoria da Dívida”, da Editora Contraponto e de “Reflexão sobre a sustentabilidade do Nordeste”, da Editora Konrad Adenauer |